sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Emoldurando a noite


Saudade [Chico César e Paulinho Moska]Maria Bethânia e Lenine

O sol desenha em dourado
O meio do dia, o sol a pino
A formiga amarela na folha
A flor do mato, aquela de soprão

O sol ruborizado horizontea
Tece nas copas das árvores
Doura no viés das folhas
Os ninhos de passarinhos

As borboletas abanam nas asas
O vento quente de noite
Acende o lume dos pirilampos
Estrelas de céu dos gafanhotos

Fico grilado de encanto
Guardo a noite em deleite
Num tempo das vacas gordas
Que as horas mamam famintas

A noite se embala em cadeira
As mariposas olham de sapo
O preá escuta de coruja
A varanda balança de poesia

Amanso o teu pé de sono
A boca sussurra de ouvido
Em lua que pisca de meia
Te durmo de sonho acontecido

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Entre a cidade sim e a cidade não

Zima, Rússia [imagem internet]
Рождеством Христовым и с Новым годом

Sou um comboio rápido
que há muitos anos vai e vem
entre a cidade Sim
e a cidade Não.
Os meus nervos estão tensos
como cabos
entre a cidade Não
e a cidade Sim.

Tudo está morto e assustado na cidade Não.
É como um embrulho feito de tristeza.
Dentro dela todas as coisas franzem a testa.
Há medo nos olhos de todos os retratos.
De manhã enceram com bílis o soalho.
Os sofás são de falsidade, as paredes de miséria.
Nunca te darão nessa cidade um bom conselho,
nem um ramo de flores, nem um simples aceno.
As máquinas de escrever batem, com cópia,
a resposta:
"Não-não-não... não-não-não... não-não-não..."
E quando enfim se apagam as luzes
os fantasmas iniciam o seu lúgubre bailado.
Nunca, ainda que rebentes, arranjarás bilhete
para fugir da negra cidade. Não.

Ah, mas a vida na cidade Sim é um canto de ave.
Não tem paredes a cidade, é como um ninho.
As estrelas dizem que as acolhas nos teus braços.
E sem vergonha seus lábios pedem teus lábios,
num brando murmúrio: "São tudo tolices..."
A flor provocante implora que a cortes,
os rebanhos oferecem o leite com seus mugidos,
ninguém tem ponta de medo.
E aonde queiras ir te levam num instante comboios,
barcos, aviões,
e com um rumor antigo vai a água murmurando:
"Sim-sim-sim... sim-sim-sim... sim-sim-sim..."
Mas às vezes é certo que aborrece
ser-me dado, afinal, tudo sem esforço
nesta cidade Sim, deslumbrante de cor.

É melhor ir e vir até ao fim da minha vida
entre a cidade Sim
e a cidade Não!
É melhor ter os nervos tensos como cabos
entre a cidade Não
e a cidade Sim!

Ievgueni Ievtuchenko
in Ievtuchenko em lisboa (1967)

http://canaldepoesia.blogspot.com.br/2009/06/ievgueni-ievtuchenko-entre-cidade-sim-e.html

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Boas Festas!


Desenho de Giz -[João Bosco e Abel Silva] João Bosco

Se o sorriso é breve
E a vida mais breve ainda
Se a vida é leve
E o sorriso mais leve ainda

Pois, seja a vida breve e um sorriso leve
Mesmo que breve, sejas leve e sorria

Boas festas e um Feliz Natal!



Nasce um rio dentro do amar


Quando O Amor Acontece - [João Bosco e Abel Silva] João Bosco
Faixa composta para o álbum 'Ai Ai Ai de Mim' (1987)

Encontro o lado molhado de noite
Perdi na palavra o nome de amar
Morro a sua nudez de sereia
Na aurora o trevo de seu luar

Dentro de mim tem um rio
Fiz-me tarde e findo anoiteço
Nasço de encontro das águas
Emudeço a memória que teço

O amor tem aladas rimas
Conhece o sonho acordado
Quando usa as asas de noite
Cobre o sonhar das lágrimas

O dia sempre chega de noite
Quem ama um dia, n'outro chora
A noite, sussurra-se o terço e ora
Seremos todos, um dia, o embora

O carinho afaga os passarinhos
A saudade mora no olhar de cão
O silêncio brilha o desejo de sol
Adormecido na palma de sua mão

A noite se descobre de pele
A paixão agita sobre as águas
Do silêncio infinito das pedras
Acorda o amor de suas mágoas

Nasce um rio dentro do amar
O verbo delira no curso de rio
De permitir-se à vida, nasce o mar
Em auroras de possíveis sonhar

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Gosto mesmo é de virar nuvem


Mente Ao Meu Coração [F. Malfitano, Fco Malfitano e Pandia Pires] por Maria Rita

Estou sofrendo de crepúsculo de letra
Deve ser de segredo de caracol
Fico de espiral escrevendo de cetra
Sou feito de nariz de longo vento

Vivo tentando ser o gosto de saudade
Embaraço os teus cabelos de milho
As borboletas brilham de maioridade
Reclamam que os girassóis giram de chuva

Gosto mesmo é de virar nuvem
Escuto música da árvore de sanha
Deito de passarinho de adoçar frutas
Amarro o tempo de teia de aranha

Sou um prego de parede branca
O que segura a tua imagem de cera
Um rio de vidro passa cortando de bera
Atrás da tua lembrança de mil pedaços

Um colibri leva as asas de ver-te
Guarda o lume de uma esmeralda
Os gerânios transpiram de toda sede
Pela doce saliva que da sua boca verte

A morte se viu e cobriu-se de vida
Agora dorme-se no sono de garça
Seu corpo faz que brilha de meia lua
Da água o peixe olha e boia de farsa

Auroras entre as vespas não é tudo
A vida de boa ou má sorte afunda
O antes, durante e depois do ludo
Todo formigueiro lidará com a morte

Escuto música da árvore de manha
Deito de passarinho de adoçar frutas
Amarro o tempo de teia que assanha
Gosto mesmo é de virar nuvem

.


Trajetória [Serginho Meriti] por MARIA RITA

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Tem gente qualquer que afrouxa


Dindi [Tom Jobim e Aloysio de Oliveira] por Jane Monheit
September 23rd, 2002... It was a particularly beautiful and sultry evening--and, high atop Manhattan, the romance of the legendary Rainbow Room was in all its glory--a truly perfect match for the magnificent voice and presence of Jane Monheit.

Torço o rio até que as gotas corram
Indiferentes, morrem de nada
Só podem estar doentes de rio seco
Como uma doença que dá de olho
Gota de lágrima seca de horizonte
Fica vermelho de tanto fogo de céu  

Viver é, antes de tudo, uma morte
Antes de ser pedra, nunca foi água
Era poeira de sola, um pé andando à toa
Perseguia a sombra de maré de peixes
A morte descobriu a água no olho de peixe
Desde então, a morte se descobriu na vida

Essa abelha dorme na flor de aurora
O orvalho está escondido de lua
O amanhecer sofre de ontem
Ninguém quer envelhecer um dia
Tem gente qualquer que afrouxa
A minha roupa de insônia que disse

Uma voz pequena virou mulher
(Tem voz pequena que vira o bicho)
Antes era um vento cheio de curvas
Gostava de ser folha solta dançando
Sofria presa de ponta de galho
Nem cantava de bico de passarinho
Depois do primeiro voo virou asa

Foi a unha encravada que disse
Que a vida dói de quem tropeça
Tem ideia que pousa em cabeça
Parece dois dedos de falatório
Desenha a letra "V" de vencido
Foi ver era caroço de encruzilhada

‎Bom mesmo é fingir de carroça
Mas só funciona na frente dos bois
Precisa chover muitos grãos de terra
A estrada revira em tapete de nuvem
Se ajeita no balançar de pensamento
Fica um gosto de nada solto de vento

A vida tem um gosto que só o doce sabe
O amargo vive perguntado de azedo
Será que o azul abriu o horizonte?
Se quem é vivo anda dormindo
O sonâmbulo acordado de sonho
O dia amanhece só de anoitecido

O fim do amor começa de eternidade
Teima de sofrer de tudo aguenta
O cupido disse: o tempo sofre de batata quente
Tem amor grande de caber o impossível
No nada cabe sempre duas pessoas
O grande encontro é do tamanho de um fim


  

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Coisificando a coisa


AMANHÃ [Composição: Guilherme Arantes]por Guilherme Arantes

De súbito, fez-se a coisa
Se soubesses as coisas que senti
Certamente, muitas coisas seriam diferentes
Algumas coisas poderiam ser evitadas

Tantas coisas que realizaríamos juntos
Fez-me pensar nas coisas que passamos
Vos digo daquela coisa que sentíamos
Sei que eram coisas do nosso tempo

Entre tantas outras coisas que fomos
Só nós sabemos das coisas que vivíamos
As outras coisas vivem outras coisas
Algumas, entre tantas, coisas boas, coisas ruins

Seu olhar sempre traduzia aquela coisa
Aquela coisa só tua de ser aquela coisa
Nós tínhamos tantas coisas em comum
Mas, sei de outras coisas nem tanto

Sei que falo da coisa passada
Coisas que nem devemos lembrar
As coisas de hoje são diferentes
Sinto que as coisas estão mais frouxas

As coisas não estão mais palpáveis
As coisas da vida se desmancharm no ar
As coisas que gostamos passam tão rápido
Hoje sou uma coisa, amanhã sou outra coisa

Alguma coisa faz-me ficar em casa
Nem consigo sair para fazer as coisas
Dá-me um pavor de todas as coisas
Um temor de todas as coisas ruins

Sei que a coisa está pegando
Se ficar a coisa pega,
Se correr a coisa coisa
Pensar na coisa dá até um frio

Daqui há pouco a coisa passa
As coisas melhores são eternas
As coisas que sinto passam
A única coisa que sei e que não sei

Tudo é coisa de deixar acontecer
Coisa de hoje, coisa de futuro
Coisa que hoje serve, amanhã é outra coisa
O que mais importa mesmo é a coisa que sou  

A coisa é mais embaixo
Coisas de rir
Coisas de chorar
Entre tantas coisas de amar

Só sei que foste a coisa mais linda
Não te trocaria por nenhuma coisa
Porque foi a coisa mais importante
A coisa que mais sinto falta entre outras coisas  

Algumas coisas dão prazer
Outras coisas nos machucam
Mas no fim... sabes de uma coisa?
Na coisa cada coisa tem o seu lugar

Amanhã a coisa vai ser diferente

domingo, 8 de dezembro de 2013

Na superfície lisa da indiferença


A moça do Sonho [Chico Buarque e Edú Lobo] por Maria Bethânia

Num sentimento de eco profundo
Percorro sem norte em superfície gélida
Meu tempo é do contratempo
Nele habita o desamor do mundo

Mora em mim o homem vazio
Se paro e reflito, afundo e congelo
Meu tempo tem o tempo do vão
Percorre na lâmina o corte frio

Não há tempo de sentir a falta de mim
Meu pobre tempo nem tempo tem
De mais tempo para a ignorância fértil
Sobrevive na escassez do próprio fim

Recrio a tristeza nas próprias dores
Descrentes, somos o medo de ser feliz
Meu tempo é de um sobretempo
Não consegue amanhecer os amores

A viva inércia do conhecimento redutor
Ressoa na solidão silenciosa de ser livre
Reconstrói o corpo num deus de plenitude
Incessante novo sem tempo de ser amor

A nudez num espaço sem sentido
Sobrevive da vigila dos laços frouxos
Meu tempo é de rasos desejos
É a palavra no consumo emudecido

Obscureço o real em outros gostos
A insaciável mudança da existência
Meu tempo desconstrói o sagrado
Clarifica-se em profanos rostos

Guardo-me no espelho de narciso
Sou o apocalipse e a temida medusa
Não me faço dos olhos dos outros
No tempo vivo sou o impreciso

No encontro de outra sobrevivência
Meu tempo será a condição do outro
Será a identidade aberta e solidária
Na pulsação replicante da convivência

No recomeço que uma vida revela
Num deus real de um novo paradigma
Na face aberta pela condição do outro
O tempo será daquele que o sujeito zela

Se o meu tempo criou o tormento
Se tudo confinas à indiferença
Se só reconheces na condição humana
Os horizontes breves de cada momento

Na flor de plástico um eternizar
Sou todo o sólido que se desfaz
No abandono dos próprios sentidos
Sou o medo coletivo de amar

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O escritor que "iluminou a poesia portuguesa"


O que tinha de ser  [Vinicius de Moraes e Tom Jobim] por Caetano Veloso

[Não posso adiar o amor para outro século]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

O Grito Claro, 1958
António Ramos Rosa
http://antonioramosrosa.blogspot.pt
O escritor que "iluminou a poesia portuguesa"
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