segunda-feira, 23 de setembro de 2013

DEUS VÊ TALVEZ COM AS PÁLPEBRAS DESCIDAS

Deus vê talvez com as pálpebras descidas 
e assim vê o nosso espírito como um halo ténue
ou uma sombra que estremece mas contínuamente se levanta
É ele que sustenta a nossa integridade vertical
com a sua imóvel respiração incessante

Que dificil é ser o alvo desta atenção divina
como se fôssemos apenas o aro vazio de um puro abandono
Mas é nesta entrega passiva que nós somos
mais do que órfãos de um útero materno
e nos erguemos à transparente pedra
da nossa renovada identidade

Só nesse cimo branco renascemos livres
porque nos entregamos à silenciosa respiração
do ser divino que atravessa o nosso sono
e faz resplandecer a nossa incerta ignorância

António Ramos Rosa, In "O deus da incerta ignorância seguido de Incertezas ou evidências", 2001 
Hoje, nesta segunda-feira em Lisboa, aos 88 anos, morreu um Poeta. 
Viva para sempre a sua obra.
António Ramos Rosa, natural de Faro, um dos nomes cimeiros da poesia contemporânea, escrita e dita em Língua Portuguesa. Autor de uma das obras poéticas mais extensas e marcantes da poesia portuguesa contemporânea, juntou-se àqueles em quem poder não tem a Morte. Possa a sua poesia continuar a desinquietar-nos, a não nos deixar descansar em Paz. 
Hoje morreu um Poeta. Que a nossa inquietude agite e dê vida à sua Obra. 
Para que possa o Poeta ficar em Paz.

A Pedra 

"Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio. 
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra."

António Ramos Rosa (1924-2013), uma vida dedicada à poesia

http://www.publico.pt/cultura/noticia/morreu-antonio-ramos-rosa-1606787


No encantar das estrelas


Eleni Peta performing live "Cancão do Mar" of Ferrer Trindade and Frederico de Brito with The Plucked Strings Orchestra of the Municipality of Patras - GREECE

Quando a noite pousa nos pássaros
No encantar das estrelas que vestes
Repousas nas tuas asas de leito
Num confronto ao trono dos deuses

O Olimpo de purgatório dos onipresentes
Na existência crua dos semideuses

Ao peito acolhes nos braços a noite 
Sois o exílio dos laços maternos
Sobre o manto da solidão de todos
A nua existência sobre o travesseiro

Cedo ou tarde, a sorte ou a morte
Num sonho à deriva que lhe vem à boca 

Reacendes das cinzas o minuto de fogo
Nas palavras recolhidas do jogo
Do indecifrável mistério da vida
Resta-nos nada, resta-nos tudo 

Resta-nos quase o que poderíamos ser
Sem antes morrer com a perfeição dos mortos

Pensamentos que tudo arrastam
Devastando as dunas e os oásis
Na quietude calada da fronha
As lágrimas absorvendo as dores

Pedaços de sonhos dispersos no ser
O que a vida observa e não responde  

Sonhos da ânsia de presentes deleites
Reféns do delírio de outras lembranças
No desejado sabor doce de outros frutos
No passado intocado das copas das árvores

Não morrem do sonhar como destino
Os sonhos que sonhara sonhar em sonho

O silêncio teima em pulsar o coração
Na respiração lenta do vento
Acalentas nas mãos o tato descrente
Na presença de outro corpo que inventas

Intocada carência na carícia da alma
No diálogo silencioso da mulher que te fazes

Agora não és a mulher que adormece 
De vastos oceanos e imensas vagas
Num inventar de sonolentas carícias
Apenas dormes no despertar da criança

Sobre o mudo criado os ponteiros observam
Na janela do sonho o amanhecer do novo dia