Sobre Todas as Coisas [Chico Buarque] Maria Rita
Um coração cinza de enganos
Se em teu leito nas calçadas
Mesquinhei-te o olhar e o pão
Engano teu, quem se enganava era eu [...]
Minha dor senil se acomoda
A dor não dói, são meus tesouros
Vão-se meus domínios de agonia
O lume da vanglória em desespero
Quis mais... Muito além do proibido [...]
Nem excesso e nem por fuga
Se tudo pude ao gosto
No desejo de todos os sabores
Saciei-me mais que a fome
Desdenhei da fome alheia [...]
Os fantasmas fazem a dança
Labaredas de ódio e de rancor
A desonra há em muitos corpos
A escravidão em meus instintos
Alimento a face em guerra oculta [...]
Encontres o amor e meu pecado
Sofro ainda mais se estás feliz
Não quero apenas seus tesouros
Se teu prazer me torna aflito
A sua felicidade causa-me dor [...]
Tudo tive sempre ao gosto
Para um mundo sem vontades
Nem fiz pressa das escolhas
Admirei-te, averso ao teu esforço,
Só no ensejo em ser recompensado [...]
Tantos prazeres que dei tato
Em quantos corpos meu deleite
Beijo alguém somente aos falsos
Fiz-me da vantagem o meu desejo
Não raro em corrupção tamanha [...]
Ante o abismo que me espera
Perdí-me à luz do anjo caído
Nem o nirvana e nem o éden
Foram-se todos em promessas
Restou-me o agora tão sozinho [...]
Só neste segundo dei-me conta
Há um demônio em cada espelho
Seduziu-me, roubou-me as horas
Pudera quebrá-lo e não consigo
Quisera voltar tantos momentos [...]
Se a justiça sempre tarda
Nem a humana e nem a divina
Só reconhecí nos dois extremos
Pelo prazer que ora sofro
Contido e sábio é o equilíbrio [...]
Nem a imagem ou semelhança
Foram as ilusões e as promessas
Nem o eterno ou tão perfeito
Teria a imagem do Divino
Se depois do verme fui criado [...]
Por este lúcido momento
Valeu-me caro a vida inteira
Dos instintos o abandono
Olhai-me e minh'alma indaga
Se te reconheces no minuto findo [60]