terça-feira, 15 de novembro de 2016

“Inventário do ir-remediável” - Caio Fernando Loureiro de Abreu

Pecado - Caetano Veloso e Jaques Morelenbaum
[Carlos Bahar, Pontier y Francini - Arg. 1975]
Caetano Veloso70  -  http://www.caetanoveloso.com.br/
Jaques Morelenbaum CelloSambaTrio   -  https://www.facebook.com/cellosambatrio
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“Inventário do ir-remediável”

Não queria, desde o começo eu não quis. Desde que senti que ia cair e me quebrar inteiro na queda para depois restar incompleto, destruído talvez, as mãos desertas, o corpo lasso. Fugi. Eu não buscaria porque conhecia a queda, porque já caíra muitas vezes, e em cada vez restara mais morto, mais indefinido – e seria preciso reestruturar verdades, seria preciso ir construindo tudo aos poucos, eu temia que meus instrumentos se revelassem precários, e que nada eu pudesse fazer além de ceder.

Mas no meio da fuga, você aconteceu. Foi você, não eu, quem buscou. Mas o dilaceramento foi só meu, como foi só meu o desespero. Que espécie de coisa o cigarro queimou, além dos cabelos? Sei que foi mais fundo, mais dentro, que nessa ignorada dimensão rompeu alguma coisa que estava em marcha. Eu quis tanto ser tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, quis tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu.

A noite ultrapassou a si mesma, encontrou a madrugada, se desfez em manhã, em dia claro, em tarde verde, em anoitecer e em noite outra vez. Fiquei. Você sabe que eu fiquei. E que ficaria até o fim, até o fundo. Que aceitei a queda, que aceitei a morte. Que nessa aceitação, caí. Que nessa queda, morri. Tenho me carregado tão perdido e pesado pelos dias afora. E ninguém vê que estou morto.

_Caio Fernando Abreu, em “Inventário do ir-remediável”, 2ª ed., Porto Alegre: Editora Sulina, 1995.

“Ando fatigado de procuras inúteis e sedes afetivas insaciáveis, (…)Meu coração tá ferido de amar errado, você me entende? Queria que você entendesse os meus poços escuros, os meus becos – que me fazem mergulhar em silêncios às vezes longos. Não devemos nos perder, somos tão poucos. Me queria bem.”

- Caio Fernando Abreu (22/8 – mês do desgosto – 77), fragmento de carta, do livro “Cartas – Caio Fernando Abreu”. (organização Ítalo Moriconi). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

Em 25 de fevereiro de 1996, Caio Fernando Abreu falece em Porto Alegre, aos 47 anos. Ovelhas Negras recebe o Prêmio Jabuti de melhor livro de contos do ano.
Fonte:
Delfos - Espaço de Documentação e Memória Cultural/PUC-RS - Acervo Caio Fernando Abreu

http://www.elfikurten.com.br/2013/08/caio-fernando-abreu-retratos-da.html

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